segunda-feira, 5 de maio de 2008

O menino que lê emoções




Era uma vez um menino que lia emoções. Com as palavras, ele tinha muita dificuldade. Letras embaralhavam na sua frente, sílabas não se formavam, sons diferiam do que acostumamos ouvir. Uma frase um pouco mais longa, parecia-lhe uma árdua montanha pra escalar. Ele cansava fácil. Sempre irrequieto. Apesar de esforçado, era visível o seu desconforto e sua frustração. Parecia tão óbvio para todos. Mas para ele era muito complicado. Cansativo. Desgastante. A escrita não era diferente. O lápis não seguia o movimento da letra. A letra fugia do risco do lápis. Nessa batalha, muitas eram engolidas pela sofreguidão e pela ansiedade. Palavras juntavam-se ignorando os espaços usuais. Paraquêespaçosseaspalavrasprecisamestarjuntasprafazerosentidoqueelequeriadar?

No entanto, desde muito cedo, esse menino soube ler o mais difícil. Letras e números são balela frente a verdadeira dificuldade das relações humanas: ler emoções e sentimentos. Sem conseguir interpretar textos simples, ele sempre conseguia interpretar intenções, carinhos, gestos e olhares. Sem saber de onde vinha, ele deixava aflorar do fundo do seu grande coração, a emoção traduzida em lágrimas. Sim, esse menino chorava de felicidade. Mais do que isso, esse menino chorava verdadeiramente de emoção. Compensava aí, a sua dificuldade em dizer eu te amo, obrigado, que lindo!, quero vocês do meu lado, me dá colo, vai passar, vocês tem à mim e outras tantas pequenas frases ou palavras, que seu cérebro queria dizer, mas que o emaranhado de fios que o ligava até a boca, embaralhava e fazia perder o formato inteligível para os ouvidos humanos. Fácil até aí?

Esse menino sabia mais que isso. Sempre soube usar o sorriso certo, o olhar mais preciso, o movimento de cabeça mais carismático. Juntava tudo isso num quadro perfeito que derrubava todos os obstáculos, empecilhos, reprimendas e correções. Não. Ele não usava isso pra burlar ou transgredir. Ele usava pra pedir desculpas. Pra pedir mais uma chance. Pra dizer que não ia fazer de novo. Tá bom. Ele abusava disso muitas vezes. Mas quem de nós não abusaria, sabendo a linguagem da emoção com tanta fluência? Quem de nós não abusaria sabendo que entre tantos caminhos difíceis, ali estava um seguro e garantido?

Esse menino, hoje, ainda está longe de chegar lá. Cada dia é uma batalha e cada dia é uma vitória. Ele está crescendo e tomando ciência de sua condição diferenciada. Na verdade, acho que ele sempre soube. Nos mandou os sinais através da emoção. A linguagem que ele sabe falar melhor que todos nós. Corre atrás com muita garra, engole em seco algumas ofensas proferidas por outras crianças cruéis em sua inocência. Sempre atento e sempre guiando com o coração pelos caminhos tortuosos que a vida lhe traçou. Os temores iniciais, as incertezas, as peregrinações por consultórios, aos poucos vão dando lugar a algumas constatações que nos ajudam saber pra onde ir. Fisicamente, não há nada. No futuro, muito provavelmente ele será considerado disléxico e ouvirá uma relação de ilustres figuras públicas, portadoras do mesmo problema.
Desde já, um vencedor! Juntos, vamos cruzar muitas linhas de chegada, meu filho! E você, dono de um talento raro, conquistará tudo o que você quiser, lendo emoções ao invés de palavras e escrevendo com sorrisos e essa carinha linda, a história da sua vida.






8 comentários:

Anônimo disse...

Sem querer fazer nenhum tipo de comparação, quem é vitorioso nesta história? Vocês, por terem um filho como ele ou ele, por ter pais como vocês?

Ana Laura disse...

Que lindo, Marquinhos.

Unknown disse...

Me emocionei bastante com o texto. Tenho um carinho especial por este menino que lê sentimentos.

Unknown disse...

Primo... sem comentários... muito lindo.. fiquei com o olho cheio de água... eu sei como é ter alguém especial dentro de casa e eu te garanto.. nao trocaria esse alguem por nada e nem ninguém nesse mundo.. a gente pensa que a gente é quem ajuda e ensina neh? Na verdade não... a gente aprende muito mais com eles do que eles com a gente..

saudade de vcs...

beijaum..

Ana Paula disse...

Chorei, chorei, chorei... Esse menino emociona, toca, conquista, cativa!

Anônimo disse...

Maravilhoso. Quem dera todos tivessem essa sensibilidade...
Estaremos sempre por perto para acompanhar cada conquista escolar, porque o aprendizado do coração...ah! esse somos nós que temos que aprender.

Anônimo disse...

Ê tio Marquinhos...também fiquei aqui, chorando...
Passei duas tardes na UNB em debates sobre dislexia. Ninguém conseguiu se expressar tão bem quanto você. Vou mandar o link do seu blog para a comunidade de discussão, tá?

Anônimo disse...

Marquinhos,
A Renata me passou o link do seu blog. Esse texto certamente me fará voltar mais vezes. Parabéns, cara. Não é só um texto. Ele traz algo mais para quem lê. Acho que "o menino que lê emoções" realmente é criação de "Alguém que escreve com a alma".

Grande abraço,

Cláudio Leite